Loading...

Quinta-feira, Abril 25, 2024

O  ENCONTRO  DE  DUAS  MISSÕES

No século passado, início da década de sessenta, vivi a experiência radical da mudança de vida! Da paz e do silêncio dos claustros conventuais, a austeridade da cela franciscana, da oração e do estudo, transitei para o desassossego e a linguagem rude da caserna! Era a “tropa” com os crosses, a ordem unida, a aplicação militar… Enfim, a incorporação, em Mafra, no “COM”- Curso de Oficiais Milicianos! E cerca de dois anos depois dei comigo no mato, no capim e nas bolanhas da Guiné-Bissau. Era a guerra colonial, de 1964 a 1966!

Meio século decorrido, em Janeiro de 2016, a UASP – União das Associações dos Antigos Alunos dos Seminários Portugueses – proporcionou-me, e a outros antigos combatentes,  o regresso à Guiné, integrados no projecto solidário “Por mares dantes navegados”!

Antes, com 23, 24 e 25 anos, “celebrados” com armas, na chamada “missão de soberania”, agora, em missão solidária, com abraços de fraternidade dados a um povo irmão que, maioritariamente, vive ainda em extrema pobreza! Pudemos constatá-lo nas visitas às tabancas onde fomos acolhidos com gestos de boa vontade, sem ressentimentos, face ao sofrimento da guerra! Aí celebrei, de novo, o meu aniversário, os 75 anos, com o conforto, a alegria e a generosidade dos meus companheiros da nova missão.

Permitam-me que, já octogenário, construa, com “materiais” diferentes, a longa “ponte” do “encontro das duas missões”, a de 1964-1966 e a de 2016. Então, com os camaradas militares da “Companhia 618”. Agora, com o grupo de voluntários da UASP enviados às periferias reais e existenciais ao encontro amigo e solidário dos irmãos africanos, como nos exorta o Papa Francisco.

Para as fundações desta “ponte”, escolhi o “ENCONTRO NA JANGADA”, conto retirado do meu livro, publicado em 2003, “Contos e Poemas de Paz e de Guerra”. Em Janeiro de 2016, como 50 anos antes, o rio Mansoa continuava lento e preguiçoso! Mas, agora, para passarmos à outra margem, já não precisámos da velha jangada, porque, entretanto, construíram a ponte “Amílcar Cabral”.

… Foi assim o nosso  “ ENCONTRO  NA  JANGADA”

“Era aspirante a oficial miliciano no “Oito” de Braga quando o “Fafe” ali foi incorporado. Dava, nessa altura, a minha segunda recruta. Já lá vai um bom par de anos, mas recordo bem esse rapaz!

Chegou ao quartel de fato domingueiro, vergado ao peso de uma mala saloia e do garrafão de “cinco”… Logo, nessa tarde, recebeu o fardamento e a roupa de cama. Tudo bem contado e fechado a aloquete, porque não faltava quem “agasalhasse” alguma peça da trouxa…

Era simples e generoso que enternecia! Por isso, depressa o aliviaram do vinho verde e do saboroso fumeiro… Oferecia de beber a quem quer que fosse! “Até ao Comandante se calhasse…”

De aprendizagem difícil, mas de vontade rija como as fragas da serra da Lameira que tantas vezes pisou. Logo nos primeiros dias de instrução perguntou-me, um ror de vezes, se não lhe davam a espingarda. Desde que fora às “sortes”, no verão passado, sonhava noites com ela. Queria sair para a rua com arma. “Aquilo metia respeito”… E, lá na terra, só tinha a enxada que lhe fez os calos.

Correu-se o primeiro crosse, com pouco mais de uma légua, e o “Fafe”, que “não se ajeitava com aquelas botas”, demorou horas a regressar ao quartel. Ainda o aliviei da meia arroba da espingarda, mas o rapaz não se deu bem…

O Maio findou. Sempre que podia, aos fins de semana, ia a casa. Por isso, nem lhe deu tempo sequer para conhecer as moças da cidade… Terminou a recruta como Deus quis. Levou mais tempo a aprender algumas coisas, mas, “que diabo”, no Juramento de Bandeira não foi nada mal. Bateu tudo certo; o marcar-passo e até o apresentar armas! Mais tarde soube que teve a namorada a vê-lo… E quando assim acontece as coisas correm mesmo bem.

Uns curtos dias de licença na aldeia e foi parar, depois, a um Regimento de Lisboa onde formou Batalhão com destino à Guiné.

A vida da tropa não parou e no “Oito” dei mais outra recruta. Seria a derradeira, porque, em Setembro desse ano, também fui mobilizado. Embarquei, em Alcântara, no Janeiro seguinte. E uma semana depois o “Quanza” atracava em Bissau.

A minha Companhia rumou a norte com a fria ração de combate distribuída no cais. Vimos a cidade a correr, de cima das viaturas, que, impiedosas, aceleravam sempre… Poucos quilómetros alcatroados e muitos de terra solta. De seguida, o rio Mansoa a travar-nos a marcha. Lento e preguiçoso mais parecia adormecido no leito.

Ali, de guarda à jangada, estava permanentemente uma secção sob o comando de um furriel. Saltámos ligeiros das viaturas que regressaram a Bissau. Da outra banda do rio esperavam-nos outras, chegadas do aquartelamento de Bula onde íamos passar essa noite. Confesso que não podia mais! Carregava o equipamento militar e ainda as bagagens levadas de casa para dois anos. Quase me arrastava para chegar à jangada quando dei por alguém a correr. Sabem quem era? Esse mesmo, o “Fafe”! Ali estava em serviço desde a manhã. Aliviou-me da carga como eu lhe fizera naquele primeiro crosse da recruta. Desenvolto, mexia-se no mato como na sua terra minhota!

O calor estalava o capim e parecia rachar as coisas e os nossos corpos ainda há pouco saídos do frio. Estávamos em Janeiro. O bom do “Fafe” que tinha a lavoura na carne e a aldeia na alma falou-me da poda e da matança do porco, como é de uso, mais ou menos, por esta altura. Sobrou-nos tempo para conversar de tudo, porque a jangada, entretanto, avariou. Reparei que o “Fafe” não se admirou, mesmo nada, com aquilo e disse-me que isto sucedia “…quando calhava e nem com o feitiço das mulheres mais velhas da tabanca lá ia…”

O conserto demorou longas horas. Toda a Companhia torrava a céu aberto. Era o nosso primeiro sol da Guiné. Mas, com ansiedade via chegar a noite que ali cai bruscamente e onde abundam os mosquitos e o cacimbo. E, também, as emboscadas…

As águas do Mansoa murmuravam não sei o quê?! Tudo era estranho e misterioso, até o silêncio dos soldados e, mais longe, o piar lânguido dos pássaros! Acreditem que me valeu o bom do “Fafe” a contar as histórias do mato que já tinha… Para ele, certamente, eu não passava de um “maçarico”…. E à maneira da sua entrada no “Oito” de Braga, ali junto ao rio Mansoa à espera da jangada, o saloio minhoto fui eu, um alferes…”

…Derrubando muros e construindo pontes é mais fácil praticar a “cultura do encontro”

 

Alfredo Monteiro (AAAFranciscanos)

4 thoughts on “O  ENCONTRO  DE  DUAS  MISSÕES

  1. Caro Alfredo Carvalho Monteiro: Gostei da narrativa. É bom recordar. E recordar, como sabes, é trazer ao coração. A propósito: diz ao P. Manuel Armindo (bom samaritano!), que marque novo retiro como aquele realizado em Fátima, em 22 de Nov.º de 2019, em que nos conhecemos. Te recordas? Um forte abraço! ARBaptista.

  2. História bonita, esta de Alfredo Monteiro. Daquelas que a gente lê, prova e fica a gostar.
    Obrigado!

  3. Caro amigo Dr. Alfredo Monteiro,

    Li, deleitosa e avidamente, a sua crónica sobre o “Encontro De Duas Missões” que me
    rememorou essa inesquecível viagem turistico-religiosa em que também
    participei nesse grupo de Janeiro de 2016, onde nos hospedámos nas Cúrias Diocesanas de Bafatá e Bissau. Foi uma missão inesquecível que jamais se varrerá da minha memória. Esta sua crónica surge no momento em que ainda choramos o falecimento inesperado do saudoso e bondoso Bispo de Bafatá D. Pedro Zilli ocorrido a semana passada.
    Amigo Dr. Alfredo, felicito-o por este seu escrito dando-nos um belo testemunho de amizade fraterna.
    PARABÉNS.

    Américo Soares

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *