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Sexta-feira, Março 29, 2024

DONGA: é difícil subir ao Paraíso …

Crónica 1

Propus-me fazer uma crónica diária, tanto quanto a memória me facultar informação e sentimentos, documentada fotograficamente, com a objectiva mais enfocada.

Aqui vai a primeira, que introduz o âmbito da viagem, as instituições envolvidas, alguma coisa dos preparativos e as peripécias do embarque, que finalizam o primeiro dia.

Luís Matias

A UASP, União das Associações dos Antigos Alunos dos Seminários Portugueses elege como uma das suas actividades anuais, o programa “Por Mares dantes navegados”, sugerido como uma revisitação aos “mares nunca dantes navegados” do Canto I dos Lusíadas, onde os Portugueses levaram “a Fé…”

Nesse espírito, partimos para Angola na Vª edição deste projecto. Já antes aconteceu Cabo Verde; Guiné-Bissau; S. Tomé e Príncipe e Madeira. A ideia e formato central não é só, nem essencialmente, fazer turismo – Qualquer programa de uma agência funcionará para esse efeito muito melhor e, eventualmente, até com preço mais acessível. Naturalmente que acompanhamos também todas as delícias do turismo, talvez até melhor, porque somos guiados por gentes locais que nos levam aos sítios habituais do turismo, mas também a outros locais e sentires onde compreendemos melhor não só as vistas, mas a emoção e o entorno. Poderemos perder no conforto e amenidades, mas ganhamos imensamente em tudo o mais.

A Angola, elegemos para a nossa jornada uma Missão Católica, Ondjoyetu, liderada e trabalhada por amigos, missão que também é nossa, não só porque genericamente o trabalho que ali se faz (como noutras missões) é, ou deve ser um assunto de todos nós, mas porque é da Diocese de Leiria-Fátima, no âmbito da geminação com a Diocese do Sumbe.

Ondjoyetu quer dizer “A nossa Casa”, em Umbundo, idioma falado naquela parte de Angola.

Decidimos fazer uma experiência de Missão, entrando no seu âmago, viver destro dela e experimentar as alegrias e as agruras da vida de missionários. O grupo UASP para esta actividade é de 24 pessoas, e tivemos de dividir o grupo em 2, por razões logísticas (de alojamento e de mobilidade), 12 a viajar em Janeiro, 12 a viajar em Julho próximo. Estas memórias de viagem referem-se à experiência vivida na Missão com o primeiro grupo.

Os preparativos mais próximos vêm de uns meses antes e, à medida que o tempo se aproximava, a ânsia e a expectativa iam aumentando. Papeis atrás de papeis, stress suficiente sobre os vistos e alguma eventual recusa ou demora, medicamentos, malária e picada de mosquitos, redes mosquiteiras, repelentes, impermeáveis, sacos cama… enfim uma panóplia de itens geradores de stress e de ansiedade. À boca dos vistos, um episódio triste que logo ali nos chocou, que foi a impossibilidade de a Ângela viajar por motivos de saúde, e logo ela que tinha especiais expectativas na viagem por levar os filhos pela primeira vez a visitar a terra onde tinham nascido. Haveria de desfechar num choque maior. Em cima da hora e num sprint de procedimentos, preenchemos o lugar agora infelizmente vago no grupo, pelo companheiro Vaz.

Nos preparativos, os últimos retoques foram feitos num encontro em Ourém, no final de uma monumental Chicharada, para angariar fundos para levar à missão – Sim, porque partilhar com as comunidades que visitamos (neste caso, com quem íamos viver naqueles dias), faz parte dos objectivos do projecto. E a ansiedade cresceu.

No dia da partida, 2ª feira, pelas 16 horas, o primeiro grupo saiu no transfere a partir do Seminário de Leiria. Rumámos a Fátima, para apanharmos mais navegantes e ali foram despedir-se de nós o Pe. Armindo Janeiro, o Pe. Joaquim, a Isabel e o António Agostinho, todos envolvidos com este projecto. E a boa disposição acompanhou estes navegantes até ao aeroporto. Ali esperavam-nos os últimos dois navegantes. As formalidades da parte de fora foram rápidas e simples e passámos à zona reservada.

Como o tempo sobrava, e a noite ia ser longa a atravessar meio mundo, sentámo-nos na zona da restauração e cada um proveu ao seu sustento de acordo com os gostos e a disponibilidade da comida de plástico.

Como o Pe. Artur Oliveira cumpria hoje mesmo mais um ano de vida, e como as idades dos navegantes já não permitem ter vergonha de quase nada, os 11, surpreenderam o aniversariante com uma improvisação bem sucedida. Compraram um bolo do tamanho de um pastel de nata, porque não havia outro; à falta de vela ergueram uma pequena lanterna e, ali mesmo na praça da alimentação, cantaram os parabéns alto e bom som, incluindo uma versão quase gregoriana. Bateram-se palmas e, outros transeuntes ali nas redondezas associaram-se à comemoração, sem bolo que não chegava nem para a cova de um dente. Digno de registo um grande acontecimento: a prenda. O Mc Donald que estava ali próximo, associou-se ao evento com reforço na cantoria e, no final, um diligente funcionário veio a correr fora do balcão para entregar ao aniversariante, a título de prenda, um boneco da marca, daqueles que colocam dentro das caixinhas dos menus infantis. Para além da risota geral, fica o gesto simpático e, talvez o Pe. Artur o conserve como mascote e memória de uma peripécia que acontece uma vez na vida a quase ninguém.

E passado um tempo, após a normal impaciência da espera começar a dar sinal de si, os altifalantes da zona de embarque começaram a anunciar o princípio da grande aventura e o magote de gente que quase encheu o avião, começa a atropelar-se na fila, como se alguns voassem e os outros ficassem em terra. Como não ficou ninguém, e o avião nem encheu completamente (ao contrário de uns anos antes em que os voos eram muito mais e sempre cheios), lá nos acomodámos nos assentos para 8 horas de quase imobilidade.

Tirei a guitarra das costas (sim, porque a companhia do instrumento é sagrada e já começa a ser imagem de marca), arrumada na bagageira, refastelado na cadeira, pronto para os cerca de 6.000 Km, 3 filmes e duas refeições que, por sinal, nem estavam assim tão desenxabidas.

Normalmente não durmo nas viagens. É uma opção. E nesta rota, o hábito de tantas vezes a ter realizado, levou-me a cumprir o ritual habitual: os 3 filmes, um pouco de música, um pouco de leitura, momento magno para pensar e desfiar ideias e lembranças. E naturalmente que ainda sobrou para alguma conversa com a navegante do lado e uns piropos aos vizinhos próximos que eram outros navegantes.

Quando ao fim de muitas horas se começa a ver sobre a asa do avião a aurora, primeiro ténue, em que as trevas e a luz nos transportam aos confins dos Génesis, ou às possíveis imagens sugeridas por Sagan ou Hubert Reeves nas interessantes leituras sobre astrofísica, é também um anúncio e um prenúncio, que a esta altitude e latitude chega primeiro, de que novo dia lá vem.

Vamos seguindo a rota da aeronave, sobre o deserto, cruza a linha do Equador, passa sobre Acra, o Golfo da Guiné, Cabinda e os seus fogachos no mar que libertam a fúria dos hidrocarbonetos… acendem-se as luzes, acordam-se os últimos dorminhocos e eis que chega o merecido pequeno almoço. Logo após a recolha, o anúncio de que estávamos a baixar para Luanda. É outro dia. O primeiro dia (… do resto das nossas vidas). Neste caso, para mim, um dia colado a outro dia, sem fronteira no cronómetro. O que verdadeiramente marcou o início de um novo dia, foi a luz da aurora, a ânsia do pisar de novo este solo, sentir o ar quente dos trópicos e iniciar a aventura nova em lugares velhos.

One thought on “DONGA: é difícil subir ao Paraíso …

  1. A avaliar pelo “exímio” escriba-mor e suas naturais capacidades vocabulares e necessária síntese, imagina-se o que aí virá (julgo que de surpreendente. ) Um abraço caríssimos amigos navegante missionários.

    M Domingos

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