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Quinta-feira, Março 28, 2024

UMA  CONSOADA  NO  MATO, por Alfredo Monteiro

Em Dezembro celebramos o Natal do Menino Jesus e a Festa da Família. Permitam-me que regresse à noite de 24 de Dezembro de 1965, a noite da consoada. Porque já passaram 57 anos, vou socorrer-me do conto, (Uma Consoada no Mato), publicado no meu livro, ” Contos e Poemas de Paz e de Guerra”:

-“ Aquela noite era diferente e estranha! Nas botas militares só nos presentearam com a lama apodrecida das bolanhas. A guerra não deixou que os meus soldados tivessem Natal. Fez-me pena e padeci com eles. E sob um poilão centenário, onde junto às raízes construí um abrigo, vigiava a pensar naqueles homens valentes, espalhados em redor e a velar também. Até podíamos fazer ali a nossa consoada de rações de combate se nos deixassem a sós com o manancial das palmeiras e a paz da noite silenciosa. O grupo de combate saíra para nomadizar  em área inimiga. Caminhou longas horas com o zumbido dos mosquitos e o cacimbo doentio das noites tropicais. E, depois, com o sol escaldante, capaz de estrelar um ovo nos capacetes de aço que nos protegiam a cabeça! Connosco ia o Joaquim, um guia astuto e conhecedor da selva, levando-nos por atalhos escondidos. O capim, crescido e espesso, deixava algumas pontas coladas ao suor dos rostos. As espingardas que, de princípio, têm sete quilos e pouco, mais tarde já pesam arrobas! Ainda os carregadores pejados de munições, a faca de mato e algumas granadas de mão nas algibeiras peitorais e também as rações de combate. À cinta o inseparável cantil da água. A sede é um sacrifício da guerra. Mas, toda a guerra é um sacrifício… Por volta do meio dia, quando o sol parece ferver a água suja das bolanhas, parámos sob árvores entroncadas a servirem de abrigos naturais e aí fizemos a nossa primeira refeição. Enterrados os restos para camuflar a presença da tropa, continuámos a caminhar sobre o chão escaldante e febril da Guiné, enquanto os jagudis procuravam os restos. Antes que anoitecesse tínhamos que alcançar o objectivo. A emboscada traiçoeira podia rebentar a qualquer momento. E rebentou. Quando assim acontece não se dá pelo tempo nem pelo espaço! Houve muito fogo das armas ligeiras, intervalado pelas detonações das granadas dos morteiros. Os rebentamentos ouviam-se ao longe, acordando estremunhadas as coisas adormecidas da selva. O avião de apoio e de reconhecimento contactou-nos pela última vez. Entretanto, pedimos um helicóptero para evacuar um ferido grave. Era o “Transmontano”, um soldado que na luta sempre fora rijo como as fragas da sua terra. Caldeado pelo sol dos dias grandes e pela neve da montanha até era homem para lhes “comer a alma”! Lesto, como de outras vezes, lançou uma granada de mão, calando as armas inimigas, mas seria atingido mortalmente. Essa emboscada do entardecer, vizinha da consoada, marcou a estatura destes valentes soldados.

Depois, simulámos a retirada em várias direcções, porque sabíamos que nos vigiavam. Mas, a nossa missão era pernoitar naquela zona. Agora só dependíamos de nós. A qualquer altura podiam atacar-nos de novo… Depois, cada um ou aos pares, conforme a disposição defensiva, cavou o seu abrigo e fez a sua consoada, abrindo as latas de conserva à mistura com a água do cantil… E foi, então, que recordei “O par e o pernão”, jogado ao redor da lareira, e as crianças à volta do presépio. Ia sorrindo! Mas, ao olhar ali os meus soldados, longe dos seus familiares, cansados da luta e sem Natal, quedei-me triste. Fez-se escuro e houve silêncio. Adormeceram as coisas misteriosas da selva. Era a hora do recolhimento. E, à meia noite, recordando o forte soldado transmontano que a morte nos roubou na “Noite da Vida”. Noite santa em que os anjos anunciaram, em Belém, a Paz a todos os homens de Boa Vontade, ainda tentei cantar baixinho: “Noite de Paz, noite silente, tudo repousa suavemente…”, só o meu pelotão vigia…..

Alfredo Monteiro, AAAFranciscanos

2 thoughts on “UMA  CONSOADA  NO  MATO, por Alfredo Monteiro

  1. Que bonito mas, simultaneamente, tão real que me fez enregelar a espinha. Que vivência Dr. Alfredo! Bom Ano. Abraço

  2. Gostei de, através do seu texto, recordar as minhas noites de consoada, e não só, no Norte de Angola, deitado ao ralento sobre um colchão de ar comprimido, mirando as estrelas e escutando os ruidos da selva de capim que nos rodeava. Noites lindas e ricas pela saudade que nos invadia! Que saudades …da juventude!!!!!
    Obrigado Alfredo.

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