POR MARES DANTES NAVEGADOS
6ª EDIÇÃO – MOÇAMBIQUE
V – HÁ MILAGRES EM MAPUTO
Parte 1
Deitámos tarde, mas o despertar foi menos exigente, foi permitido não nos levantarmos com os pássaros. A Celebração matinal na simpática capela da casa, e o habitual pequeno almoço, deram-nos o balanço para um grande dia.
Estamos a aproximar-nos do termo da nossa incursão nesta África estranha e bela, mas o tempo aqui tem outra medida diferente da que nos dá o relógio. A intensidade com que se vive, se saboreia e se aprende, predomina largamente sobre os dias, as horas e os minutos. Talvez possa citar o nosso companheiro de viagem do primeiro dia, Mia Couto, do seu livro “Mar me quer”:
“- Me diga, minha Dona: qual é a palavra para dizer futuro? Sim, como se diz Futuro?
-Não se diz, na língua deste lugar de África. Sim, porque futuro é uma coisa que existindo nunca chega a haver”.
Com efeito, a vida aqui, passa muito no presente, mas com toda a intensidade.
O Pe. Francisco, salesiano, apresentou-se cedo em Laulane, bem como o minibus do Instituto Superior São João Bosco, para nos conduzirem pela capital, a ver as vistas e a visitar projectos, de facto maravilhosos, e que fazem a diferença neste contexto de país africano, novo, e a maior parte da sua existência, em guerra. Claro que ainda não estão resolvidos os principais problemas de maturidade do estado, quer ao nível político e de estabilidade da democracia, como aos níveis económico e social, da distribuição da riqueza, da educação, da saúde, da habitação, da produção e da economia em geral. Mas estará a caminho, e o país tem recursos para garantir um progresso sustentado e de futuro risonho. Assim o queiram os homens. Mas vai demorar ainda muito futuro e, sobretudo, intuímos que vão manter-se desigualdades por muito tempo.
A própria capital (à imagem de outras cidades africanas – como uma espécie de destino deste maravilhoso continente), mostra e é paradigma disso mesmo: crescem por todo o lado edifícios monumentais com mais de 50 pisos, modernos, futuristas, mantendo nas suas sombras barracas ou construções degradadas, misturam-se modernas avenidas com ruas lamacentas, esburacadas, com passeios todos degradados, ás vezes impraticáveis, bairros modernos e no topo da modernidade, com bairros mal cheirosos… enfim um contraste que podemos observar pelo imenso território deste belo país.
É visível e evidente, o que podemos considerar um défice generalizado dos elementos fundamentais para o progresso de um povo. Só que não falta tudo. Não faltará vontade e, sobretudo, vemos verdadeiros oásis (como já constatámos antes), a fazer a diferença e com uma grande visibilidade, no panorama das áreas em que intervêm. Maputo, uma grande e linda metrópole, até com francos sinais de grande modernidade a que aludimos, a conviver paredes meias com a pobreza e o pior do terceiro mundo, exibe aqui e ali, verdadeiros milagres de futuro real, no trabalho e dedicação de inúmeras congregações, e em que, muitos dos seus actores, são moçambicanos.
Começámos por verificar isso mesmo, logo na casa que foi nosso lar nestes dias, em Laulane, e no trabalho imenso da Consolata por todo o país de Moçambique.
A nossa primeira rota do dia, levou-nos a um município na periferia da grande urbe de Maputo, chamado Matola, que parece ter sido um bairro e terra que viu florescer, noutros tempos, um miúdo chamado Eusébio da Silva Ferreira e que dispensa qualquer apresentação.
Fomos directos a umas excelentes e extensas instalações dos Salesianos, onde ao longo do tempo se tem desenrolado uma série de actividades e valências. Uma residência, seminário que ainda acolhe seminaristas que vivem aqui, mas estudam fora, e uma grande e profícua escola de formação profissional. Quando se afirma que “há milagres em Maputo”, podem não começar aqui, nem são, naturalmente, exclusivos, mas são muito visíveis neste lugar, logo no início do nosso périplo pela capital e arredores. Visitámos detalhadamente a escola, que se adapta à procura e às necessidades do mercado de trabalho.
Tudo o que é maquinaria necessária para uma formação de topo, está lá, nas diversas oficinas, perfeitamente funcional. Muitos alunos partem daqui para a sociedade, com qualificações e prática de trabalho efectivo e muito, mas muito diferenciada. Vão fazer a diferença num país onde ainda é raro encontrar pessoas assim formadas. Levam um nível de conhecimentos técnicos e profissionais que lhes permite singrar bem na vida, e darem um contributo muito válido para o progresso de uma nação nova e a necessitar de tudo.
Percorremos as oficinas e salas de formação da carpintaria, da serralharia, canalização, e a electricidade, onde pudemos admirar um departamento especial de energias renováveis, designadamente a solar, com laboratórios que nos espantam e causam uma agradável surpresa. Interagimos com formandos, simpáticos e interessados, alguns já muito conhecedores das artes e ciência que estão a aprender, e falámos com professores. Percebemos que a nossa visita é, foi, muito relevante para todos eles. E o relevo que torna o facto de mostrarmos interesse pelo seu trabalho, e termos escolhido vir visitá-los, é para eles um estímulo enorme; mas mal sabem, nem chegam a saber, que os espantados e a surpresa e admiração é nossa e não deles. Como se diz na gíria popular, quem vem de “queixo caído” somos nós, porque aprendemos muito, sobretudo, lições de humildade, de dedicação, de sabedoria, de empenhamento e até visão estratégica. Aqui, morrem todas as nossas eventuais presunções e razões de superioridade. Aceitar a diferença, sim, claro, mas superioridade, não.
Sentimos nesta satisfação que o dia começou bem. E perante o que vimos, há sempre a sensação de que o melhor do dia podia estar cumprido, mas não; melhor é tudo. Não por comparação, mas por acrescento. Daqui partimos para uma zona não muito distante, a visitar um enorme complexo, partilhado em termos de actividades e responsabilidades, pelos Salesianos e pelas Irmãs Franciscanas Hospitaleiras da Imaculada Conceição.
Começámos por aqui. Uma acolhedora instituição com escola, e um generoso espaço contíguo onde funciona a sede da Província de Moçambique, daquela congregação. Visitámos a escola, apenas feminina, e de novo interagimos com as alunas. Ali ao fundo funciona um hospital, de dimensão considerável, construção típica portuguesa do início da década de 60 do século passado, que era também orientado pelas Irmãs Franciscanas Hospitaleiras, aliás carisma específico desta congregação, mas que, após a nacionalização dos bens da Igreja, mais tarde devolvidos parcialmente, este não retornou, sendo integrado na rede pública de saúde e, por isso, é hoje gerido pelo Estado. Não tivemos informação de como funciona agora.
Aqui, num grande largo frente ao hospital, do outro lado da estrada principal, e tomando o local central entre as instalações das Irmãs Franciscanas e as dos Salesianos, uma imponente igreja construída por estes, ainda nos tempos coloniais, sobressai no conjunto edificado do bairro. Está bem conservada, e é o centro da paróquia de S. José de Lhanguene. Aqui conversámos com o pároco, que nos falou da bem conservada e bonita igreja. E do outro lado, um outro complexo, com residência dos Salesianos, um internato, e um Instituto Médio, que é uma escola de formação média, com cursos diversos, destacando-se cursos de contabilidade e gestão, e outras áreas administrativas.
Daqui seguimos para o Instituto Superior S. João Bosco, o corolário da actividade salesiana nesta zona. Uma extensa área de implantação deste complexo, recebe-nos com entrada ampla por um portão com portaria guardada, para um pátio amplo, à direita do qual se ergue uma altaneira torre com uma inscrição de identificação do local. Na parede em frente, no primeiro edifício, um elemento escultural de tamanho natural, exibe uma estátua de S. João Bosco com alguns jovens, e lá no cimo da parede, uma grande inscrição identificativa em letras pretas “INSTITUTO SUPERIOR S. JOÃO BOSCO”. Do lado direito, uma torre altaneira exibe também uma placa cerimonial de inauguração do edifício em 2008, pelo Presidente da República Armando Guebuza.
Visitámos a residência principal dos Salesianos, apreciámos um pequeno museu e uma pequena capela da casa, cheia de arte. A capela toda é uma obra de arte. As maravilhosas pinturas nas paredes, peças únicas esculpidas, para o sacrário e suporte, até os bancos chamam à atenção pela originalidade. É pequena, mas muito intimista, com muita luz e cor. A parede do fundo, atrás do altar, exibe um imenso retábulo pintado de cores quentes africanas, com muitas cenas impactantes da vida de S. João Bosco, os seus símbolos mais reconhecidos, e com o seu trabalho com a juventude. Realmente muito belas aquelas representações, e muita arte na sua execução. Nas outras três paredes da capela, outra obra de arte e, sobretudo, de criatividade. As 14 cenas típicas da via-sacra, estão pintadas na parede com um estilo e cores semelhantes às do painel da frente, mas espalhadas ao longo de um caminho, num contínuo de jornada, fazendo verdadeiramente jus ao termo “Via Sacra”. O interessante do figurativo é que, quando vamos seguindo o caminho com os elementos pictóricos, ficamos com a sensação de que estamos num quadro animado. E estamos: a nossa atenção não tem cortes, expande-se ao longo do caminho, e movemo-nos para o seguir. Foi uma sensação fantástica a que senti. Fiquei para trás, e repeti, quase, ou mesmo, como um exercício de constatação da primeira sensação que tive. Lembrou-me o segundo passo do método científico de Galileu, 1- Experimentação, 2- “Confirmação da experimentação (repetição da experiência)”, 3- formulação em lei (método científico moderno).
Almoçámos no refeitório do Instituto Superior S. João Bosco, e convivemos com o seu Director. Um belo almoço, também regado com vinho português. E seguimos para visita às instalações do Instituto. Aqui formam-se professores para áreas técnicas, próximas de engenharias, e de gestão. Se tínhamos já ficado espantados com o que vimos na Escola Técnica e Instituto Médio, aqui o espanto atingiu o limite. Talvez nem em Portugal consigamos encontrar instituição superior, nestas áreas, com as condições laboratoriais para práticas como aqui vimos. Equipamentos altamente sofisticados e tecnologicamente evoluídos, e em abundância, para tudo o que aqui leccionam. E têm também áreas de investigação que depois concretizam em projectos rentáveis, como vimos na criação de um fogareiro estudado e desenhado para poupar combustível e reduzir emissões de gases com efeito estufa, para ser utilizado pela população em geral em Moçambique. Criação que está a ser seguida com interesse por instituições da ONU. Vimos fabricar esta peça; uma série de alunos trabalhavam práticas neste sector produtivo do Instituto – vimos e falámos com eles de experiências e sentimentos, sempre com explicação pertinente e esclarecedora de um professor. Um outro conceito. Não é novo, mas está modernizado e muito actual (aqui praticamente abandonámos e já lhe sentimos muito a falta).
Constatámos, finalmente, que o próprio Instituto tem, inclusivamente, um pequeno departamento de aconselhamento e orientação dos alunos, sobretudo os finalistas e já formados, para a criação de “startup’s” e criação de empresas próprias ou participações. Falámos com algum detalhe com a Directora deste departamento, para entendermos como funciona, sobretudo no contexto moçambicano. O espanto não acaba em cada esquina do que observamos. (Continua)
Luis Matias (ASDL)
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