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Sexta-feira, Abril 19, 2024

 ECOS DE UMA CAMINHADA CARMELITA

Tradicionalmente, quando o discurso de cada indivíduo invoca a sua família, está a englobar no conceito um conjunto de pessoas unidas entre si por relações de parentesco, vivendo ou não juntas. Não sendo esse o sentido mais restrito do termo, o avanço inexorável do tempo veio alterar e ampliar ainda mais o conceito do núcleo familiar, no qual o elo principal foi, durante séculos, o casal que se situava no topo e daí irradiava a prole que alargaria o grupo. Esses conceitos mais restritos de família, onde os sexos opostos estavam na sua base e génese, mudaram no plano jurídico, que não constitui propósito deste escrito escalpelizar.

Mas não são apenas as relações de parentesco que, num sentido mais lato, constituem as chamadas famílias. Também se podem incluir nesse conceito mais vasto, grupos de pessoas com origem, ocupação, ou outra característica partilhada. E foi assim que surgiu a “Família Carmelita”, entendida como um grupo que tem uma série de características em comum, como a devoção a Nossa Senhora do Carmo, e a tríade “Contemplação, Fraternidade e Serviço”.

E foi este tipo de Família que, nos dias 4 e 5 de março corrente, se reuniu na Casa S. Nuno, em Fátima, para estreitar laços familiares, dando crédito ao aforismo popular “quem não aparece esquece”. Juntaram-se cerca de cento e cinquenta pessoas, do Minho ao Algarve, integrantes de Ordens Terceiras, Confrarias e até de antigos alunos do seminário carmelita.

O programa foi intenso, sem grande margem para folgas como se depreendia do seu anúncio prévio. De todo o conjunto de atividades, permito-me destacar dois eventos: a palestra do Pe. José Frazão, jesuíta e diretor da revista “Brotéria”; e a Via Sacra nos Valinhos.

Foi muito desafiante e, diria, até desinquietante a palestra do Pe José Frazão que, numa linguagem simples, mas não simplista, desenrolou um forte nó que o Pe. Tomás Hálik identificou na sua recente obra “A Tarde do Cristianismo – O tempo da Transformação”.

Socorrendo-me da minha própria interpretação do que foi dito, o que vale por dizer que poderá ficar aquém, ou até “distorcida” da mensagem do palestrante, interiorizei esta ideia fundamental do retrato feito ao “entardecer” da Igreja Católica:

“O tempo é de mudança que pede mudança”.

De facto, a realidade muda constantemente, ainda que fiquemos em casa. O Evangelho de Jesus, mesmo nos tempos modernos, continua a ser uma boa notícia e um ato de responsabilidade. Se não formos capazes de testemunhar o Evangelho, a sua mensagem terá mais dificuldade em passar. No entanto, a mensagem transmitida não o pode ser como foi há cem anos, a linguagem tem de ser de hoje. Corremos o risco de usar linguagens que os nossos destinatários não compreendem. Que línguas tenho então de aprender? Que a Igreja seja mesmo Católica, isto é Universal, e que não se quede em claustros. A sua missão, não passa por usar a linguagem de ontem, mas de hoje. Não se pode ir para a China pregar o evangelho sem que, previamente, se tenha aprendido mandarim ou uma outra qualquer linguagem que os chineses possam entender.

Os cristãos que, como o avô do palestrante, nasceram em finais do século XIX e que viveram até finais do século XX, tiveram uma vida cristã mais cómoda e menos exigente. Durante esse tempo a vida e obrigações cristãs, mantiveram-se estáticas e não necessitaram de mudança. Nasceram e morreram num tempo sem mudança. Tudo bem ordenado. Tudo muito claro. Foi um tempo em que ninguém questionava a “autoridade”.

Hoje não é assim, é preciso discernir como encarar a mudança. Estamos a enfrentar um problema do qual ainda não temos bem consciência. Não nos podemos resignar a que o Evangelho se torne insignificante, embora, para muitos, seja já irrelevante.

Ser cristão hoje não é tarefa fácil como já foi. De facto, vivemos a época pós-cristã. O que significa que já não é a igreja que estipula o quadro da vida real, como foi durante séculos. Já não é aqui e muito menos na Europa central. O mundo vai sem nós, mas nós queremos ir com o mundo! Conceitos como “expiação”, “salvação”, entre outros, já não dizem nada. Mas quem diz conceitos diz também “ritos”, “imagens” e “organizações”. São demasiado pequenos para a força do Evangelho. Para além desses conceitos, ritos e imagens, temos de encontrar outras formas de transmitir a força do Evangelho. As igrejas fechadas e vazias dizem o que a igreja é hoje: – Fechada e vazia.

No seio da igreja há visões diferentes. Por um lado, estão os conservadores que dizem que mudar é ser infiel ao Evangelho. Por outro, os progressistas e liberais contrapõem que para ser fiel é necessário mudar.

Diz o Papa Francisco que vivemos uma mudança de tempo. Não bastam mudanças de circunstância que não mudam nada! Não basta repetir frases piedosas ou feitas! Não bastam explicações simplistas que não convencem!

Voltar ao passado é estéril. A que passado voltar? É que os períodos históricos foram diferentes! Algo tem que morrer para que a força do Evangelho se exprima. Este “novo” deverá ser maduro, culturalmente significativo e ter força profética. Procure-se uma fé mais adulta e com maiores implicações na vida prática.

Da plateia alguém questionou: – A quem recorro para me explicar isso? Como? As pessoas à minha volta vão para outras coisas!

O palestrante respondeu: – Esse é o problema! Como? Não há nenhum padre que saiba a resposta. Terá de haver uma resposta coletiva. Os modos serão múltiplos.

As expressões visíveis da nossa fé deixaram de ser significativas. Onde estão a “ordem, a hierarquia e a autoridade”, que saíram do Concílio de Trento? Hoje, já nada disso funciona assim. Damos mais valor à liberdade e isso não contraria o evangelho. Liberdade sem pôr em causa a autoridade. Entender a família como um “processo” em evolução.

Ninguém sabe responder como! Vai demorar décadas, quiçá mais ainda. Teremos de ouvir os de dentro e os de fora, santos e pecadores. Em conjunto, talvez se possa encontrar respostas ainda mais poderosas.

Precisamos de paciência para vencer etapas e acompanhar e integrar os processos evolutivos.

Estruturalmente todos os batizados são iguais na responsabilidade que o Evangelho impõe.

Alguém levantou a questão das Bem-Aventuranças perante o mundo que, de certo modo, seriam um obstáculo à evolução que se pretende. A resposta saiu clara: – Temos que ver a quem falamos das Bem-Aventuranças. É que de acordo com a Pastoral da Igreja Católica o Evangelho deve ter em conta os seus destinatários. E exemplificou com o fariseu Simão: – Jesus não fala a Simão, mas apenas à mulher pecadora. Mas na parábola falam todos, ainda que apenas com gestos. Quem seria hoje a mulher de má vida? Que resposta lhe deu Jesus? Simão é que é razoável! Mas ser razoável não tem a força do Evangelho.

O cristianismo nem sempre foi igual. Teve períodos em que foi evoluindo de acordo com os tempos. Por exemplo, a Igreja reagiu muito negativamente ao Iluminismo e ao Modernismo e já reconsiderou e aceitou múltiplas atitudes que então combatia. Por exemplo, conceder liberdade religiosa.

Este tempo pede-nos um compasso de espera. Não se deve aceitar tudo o que a sociedade dita, mas também não devemos rejeitar tudo. Dar tempo ao tempo!

Uma nota ainda para a Via Sacra que se desenvolveu serenamente, não obstante a chuva persistente, pelo Caminho dos Pastorinhos até ao Calvário Húngaro. Durante todo o percurso, com duração de cerca de uma hora, até a chuva era piedosa e mansa, aspergindo os penitentes suavemente em sintonia com a sua postura e a serenidade envolvente do meio rural aqui e além bem revolto por ação dos javalis. Piedosa e submissa às condições existentes, sem vacilações ou manifestações de desconforto, todo aquele povo cristão escutava na sabedoria do silêncio as leituras que cada representante do grupo de origem, previamente escalado para o efeito, foi interpretando em cada estação da Via Dolorosa.

É certo que alguns se ficaram pela capela da Casa S. Nuno para aí meditarem no sofrimento do Senhor e dos homens, cedendo ao senso comum que sabe interpretar os sinais do corpo que colocam em risco o seu estado geral. De facto, a sua hodierna estrutura física já não lhes permite tais caminhadas sem que daí resultem graves sequelas.

Américo Lino Vinhais

Antigo Aluno Carmelita

 

 

 

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