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Domingo, Dezembro 08, 2024

[:pt]Misericordiosos como o Pai! (Lc 6,36)[:]

[:pt]papa-francisco-adeusO Papa Francisco anunciou a 13 de Março deste ano, na Basílica de S. Pedro, um “Jubileu extraordinário” centrado na “misericórdia de Deus”. Este Ano Santo terá início a 8 de Dezembro de 2015 e encerrará a 20 de Novembro de 2016, Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo.

Com esta iniciativa, de singular importância para a vida da Igreja e para o Mundo, o Papa Francisco recorda a todos, sem excepção, que ninguém está excluído da Misericórdia de Deus Pai, e a todos convida a sair, como “missionários da misericórdia”, às periferias existências, muitas vezes “becos sem saída”, para aí partilhar, em gestos e palavras, isto é, com toda a nossa vida, o amor misericordioso de Deus, que não tem limites nem conhece fronteiras!

O primado da Misericórdia na vida da Igreja
É significativa a data escolhida para a sua Abertura – 8 de Dezembro –, pois coincide com o 50.º aniversário do encerramento do Concílio Vaticano II. Para além de impelir a Igreja a continuar a obra de renovação ali começada, o Papa Francisco inscreve este Ano da Misericórdia no horizonte apontado por João XXIII, no discurso inaugural dos trabalhos conciliares: “Nos nossos dias, a Esposa de Cristo prefere usar mais o remédio da misericórdia que o da severidade”, e reconhecido por Paulo VI, no seu discurso conclusivo: “a religião do nosso Concílio foi, antes de mais, a caridade. (…) Aquela antiga história do bom samaritano foi exemplo e norma segundo os quais se orientou o nosso Concílio. (…) Toda esta riqueza doutrinal orienta-se apenas a isto: servir o homem, em todas as circunstâncias da sua vida, em todas as suas fraquezas, em todas as suas necessidades” (Misericordiae vultus [MV] 4).

Mas, para além da ligação a este importantíssimo acontecimento eclesial do século XX, há uma outra razão, decisiva a todos os títulos, que fundamenta, quer o novo olhar do Concílio sobre a missão da Igreja no Mundo quer este Ano Jubilar da Misericórdia, e justifica plenamente a escolha deste dia: é a celebração da solenidade da Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria!

Deus Pai, na sua infinita bondade, querendo preparar para seu Filho uma digna morada, preservou Maria de toda a mancha original e encheu-a de todas as graças para que, pelo seu sim, acolhesse o Verbo Eterno, primeiro no seu coração e depois no seu seio materno! Na plenitude dos tempos (Gl 4,4), a Trindade Santíssima quis visitar-nos, qual sol que nasce das alturas, para na nossa carne e pela força do Espírito Santo, nos dar a conhecer os segredos do “coração misericordioso” (Lc 1,78) de Deus Pai. Por isso, “Jesus é o rosto misericordioso do Pai” (MV 1) e a misericórdia, mensagem central do Evangelho, há-de ser o critério primeiro e a norma última da vida da Igreja, em todas as suas dimensões!

O Papa Francisco, missionário da Misericórdia
As referências ao dom da misericórdia são uma constante nos discursos e gestos do Papa Francisco. Logo no seu primeiro Angelus (17/3/2013), os fiéis presentes na Praça de São Pedro ouviram-no proclamar que Deus “nunca se cansa de perdoar, mas nós, por vezes, cansamo-nos de pedir perdão”. E continuava: “nunca nos cansemos! Ele é o Pai amoroso que perdoa sempre, que tem um coração de misericórdia para todos nós. E também nós aprendamos a ser misericordiosos para com todos.”

O tema da misericórdia está presente no seu brasão pontifício: ‘miserando atque eligendo’ (olhou-o com misericórdia e escolheu-o), que evoca a escolha de Mateus (Mt 9,9) e nela, a sua experiência pessoal.

Nesse mesmo ano (17/11/2013), Francisco haveria de surpreender a multidão, reunida na Praça de São Pedro, com a sugestão de um ‘medicamento espiritual’ para as suas vidas, distribuído em caixa própria, a “Misericordina”. Com embalagem de medicamento e posologia prescrita, a “Misericordina” mais não era que um terço para rezar e contemplar os contornos maternos do rosto misericordioso de Deus Pai.

Recentemente, na mensagem para a Quaresma, o Papa Francisco fez votos para que as paróquias e comunidades católicas se tornem “ilhas de misericórdia no meio do mar da indiferença”. Finalmente, podemos ainda registar que a palavra ‘misericórdia’ aparece mais de três dezenas de vezes na primeira exortação apostólica do seu pontificado, ‘A alegria do Evangelho’.

Misericórdia, o estilo de vida cristão
Numa das audiências gerais (10/9/2014), o Papa perguntava, comentando a frase que haveria de escolher para lema deste Ano Santo: “Pode existir um cristão que não seja misericordioso? Não” – respondia o Papa, e explicava: “O cristão deve ser necessariamente misericordioso, porque este é o centro do Evangelho. E fiel a este ensinamento, a Igreja não pode deixar de repetir a mesma coisa aos seus filhos: «Sede misericordiosos», como o vosso Pai, e como o foi Jesus. Misericórdia”.

E, a terminar, explicita o sentido cristológico e trinitário da misericórdia que, brotando do coração do Pai, é oferecida incondicionalmente no mistério Pascal de seu Filho e derramada gratuitamente em nossos corações pelo Espírito Santo: “Não é suficiente fazer o bem a quem pratica connosco o bem. Para mudar o mundo para melhor é preciso fazer bem a quem não é capaz de retribuir, como fez o Pai connosco, dando-nos Jesus. Quanto pagámos pela nossa redenção? Nada, tudo de graça! Fazer o bem sem esperar algo em troca. Assim fez o Pai connosco e nós devemos fazer o mesmo. Pratica o bem e vai em frente!”

“Recebestes de garça, dai de graça” (Mt 10,8)! Eis o imperativo cristão, “tão empenhativo como rico de alegria e paz”! Mas ele não se cumpre automaticamente em nós! É fruto de uma longa aprendizagem na escola de Jesus! Para “sermos capazes de misericórdia”, diz o Papa, é necessário recuperar o “valor do silêncio” e escutar a voz de Deus que nos chega pela proclamação e meditação da sua Palavra. “Deste modo, é possível contemplar a misericórdia de Deus e assumi-la como próprio estilo de vida” (MV 13).

Misericórdia, fonte de alegria e de paz
Para a humanidade e para a própria Igreja, feridas em tantos sentidos, só um amor maior que todos os limites humanos, capaz de responder aos nossos pecados, não como nós merecemos nem com voluntarismos passageiros, mas com o excesso de uma doação incondicional, semelhante ao amor de mãe, e imensamente maior do que este – como se revelou no escândalo da cruz de Cristo –, pode rasgar às nossas vidas horizontes novos, descobrir a fonte da alegria e reinventar a esperança de um mundo melhor!

E, contudo, este amor misericordioso não está longe de nós! Está mesmo ao nosso alcance, fazendo-se próximo e convidando cada um de nós a fazer o mesmo por aquele que está ao seu lado. É que Deus Pai, antes mesmo de nós Lho pedirmos, Se faz presente e, na sua misericórdia e ternura inexcedíveis – qual pai e qual mãe –, não descansa enquanto não vê os seus filhos “felizes e serenos”! Deixemo-nos, portanto, atrair pela Sua voz, que ressoa nas palavras e gestos de seu Filho, e acolhamo-la intimamente para que, contemplando o mistério sublime do seu amor entranhado, Lhe abramos as portas do nosso coração e deixemos que Ele nos abrace, fazendo acontecer festa no Céu e na Terra!

Uma das notas mais belas das três parábolas do capítulo 15 de Lucas é, precisamente, a referência à alegria de Deus! E em que consiste esta alegria? “Em perdoar”, diz o Papa, e comenta: “é o júbilo de um pastor que encontra a sua ovelha; a alegria de uma mulher que encontra a sua moeda; é a felicidade de um pai que volta a receber em casa o filho que se tinha perdido, que estava morto e reviveu, voltou para casa. Aqui está o Evangelho inteiro, todo o Cristianismo! (Angelus, 15/9/2013)

Misericórdia, caminho de alegria
Para este Ano Santo, o Papa Francisco propõe-nos uma peregrinação especial, não só às portas santas das Igrejas e Santuários, mas também aos “tempos vivos” que são os nossos irmãos, não julgando, e mais ainda, perdoando! Quantas vezes estas distâncias se revelam bem maiores e mais difíceis de percorrer que todos os caminhos dos peregrinos em direcção a um qualquer santuário do mundo?!

Como toda a verdadeira peregrinação, a exterior, há-de ser sinal de uma outra, bem mais profunda e decisiva, que se vive no arco da nossa existência sobre a terra! Como toda a peregrinação, também esta há-de ser “estímulo à conversão”, isto é, á mudança de vida que nos há-de levar à meta desejada, ao abraço do Pai e dos irmãos. Eis a festa, eis a experiência de profunda alegria em que Deus Pai nos quer introduzir! Perante tão grande desígnio de amor, todos somos convidados e estimulados a fazer a nossa parte, a dar a nossa colaboração com “empenho e sacrifício”, sem dúvida, mas por um bem maior e pela mais bela de todas as razões: dar a Deus Pai a alegria de nos abraçar no limiar da porta santa dos “templos vivos” que são os nossos irmãos, para aí, com ternura e misericórdia, fazer festa connosco!

Misericórdia, novo paradigma
Olhando para a forma como Deus revela o seu amor incondicional, testemunhado na cruz de Cristo, não basta pensar e medir as relações humanas na base da justiça e da reciprocidade! Deus não o fez nem o faz connosco! Sendo necessárias na orgânica das sociedades, elas não abarcam todo o mistério da condição humana, pois não conhecem o íntimo de cada um de nós…, só Deus! E nós não somos Deus, e Ele não nos deu esse direito! Não respeitar este limite, é correr o sério risco de usurpar o lugar de Deus e estar a delinear a medida com que haveremos de ser julgados (Lc 6,37-38).

Precisamos, por isso, de abandonar este caminho e abraçar o duplo convite do Evangelho: 1) “Não julgar nem condenar significa, positivamente, saber individuar o que há de bom em cada pessoa e não permitir que venha a sofrer pelo nosso juízo parcial e a nossa pretensão de saber tudo”; 2) “perdoar e dar” (cf. MV 14) significa que é preciso chegar a viver ao ritmo da misericórdia e da gratuidade.

Por consequência, o critério do nosso agir para com os nossos irmãos não pode, não deve ser o deles ou o nosso, mas apenas o do próprio Deus, que não nos trata segundo os nossos pecados, mas sim segundo a sua misericórdia infinita. Assim, tendo recebido primeiro e repetindo-se esta oferta de perdão e misericórdia sempre que os pedimos, também nós somos convidados a oferece-los, indistintamente, como verdadeiros filhos de Deus Pai que não faz acessão de pessoas (Act 10,35).

“Misericordiosos como o Pai é, pois, o «lema» do Ano Santo. Na misericórdia, temos a prova de como Deus ama. Ele dá tudo de Si mesmo, para sempre, gratuitamente e sem pedir nada em troca” (MV 14).

P. Armindo Janeiro

Nota: Artigo publicado na Bíblica, Novembro – Dezembro 2015, nº 361, pp. 545-547.[:]

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